Tenho escrito sobre o assunto TGV de forma
solta, e um comentário ao
post do Vasco Campilho no 31 da armada que estava a ficar assustadoramente extenso, levou-me a optar por responder aqui e concentrar de certo modo a minha opinião sobre o assunto de uma vez por todas. Para quem quer apenas ler as minhas conclusões pode saltar a exposição do problema.
Para começar, creio que toda a discussão em torno do TGV está absolutamente inquinada pelo próprio nome. Marketing político "oblige", a necessidade de apresentar obras grandiosas e "sound-bytes" simples esconde a essência do assunto, que vai sendo discutida a espaços. Quero acreditar que não há uma ligação ao aspecto comercial, ou seja, o facto de chamar TGV a uma renovação da rede ferroviária nacional não está à partida a considerar que são as empresas responsáveis pelo sistema de TGV francês que vão ganhar o concurso...
Sobre a renovação da rede ferroviária nacional, pontos prévios:
1. Há que analisar duas componentes: técnica e económica;
2. Considerações Económica:
a) o tráfego ferroviário apresenta inúmeras vantagens face a outros meios;
b) é necessário a ligação por via ferroviária à europa para tráfego de mercadorias;
c) portugal tem uma rede ferroviária com muitas deficiências e fraca cobertura;
3. Considerações técnicas:
a) a rede nacional actual tem duas bitolas: ibérica(1668 mm) e métrica(1000mm), incompatível com a rede europeia(1435mm);
b) quanto maior velocidade se pretende, maior o custo de construção por quilómetro;
c) utilização mista de uma linha de AV;
d) ler este
documento para saber mais.
Passando à análise de cada um dos pontos supracitados:
2.a) As vantagens do transporte ferroviário são de ordem ambiental, operacionais e estratégicos. Em termos ambientais, podemos assumir que os consumos energéticos serão inferiores ao transporte de uma quantidade equivalente por estrada. Incluo também nesta equação a utilização de solo, inferior para os canais ferroviários ponto a ponto, por comparação, por exemplo, com auto-estradas. Em termos operacionais, e sobretudo a partir de médias-distâncias, há ganhos associados à diminuição do risco (menos acidentes de comboio por contraponto com acidentes rodoviários), a um melhor aproveitamento logístico (a velocidade comercial é, em príncipio superior, menos restrições na circulação, maior segurança e previsibilidade nos horários) e maior automatização dos processos. Finalmente, estrategicamente, há ganhos do ponto de vista tecnológico (peças de precisão e necessidade de pessoal mais qualificado), e, assumindo a electrificação da rede, a possibilidade de diversificar os recursos energéticos (diminuindo a dependência do petróleo externo).
2.b) Dentro ainda dos ganhos estratégicos, a compatibilidade com a Europa é essencial. Para além de politicamente se beneficiar da necessidade de existir um reforço da confiança e construção dos laços com os restantes parceiros europeus, os ganhos de um mercado único só podem ser visíveis com o progressivo aumento das trocas comerciais. Neste aspecto, aproveito para criticar o "sound-byte" político sobre a essência de nos ligarmos à Europa: era necessário distinguir o tráfego de passageiros do tráfego de mercadorias. Embora o primeiro possa e deva existir, manter-se-à irrelevante face à preponderância do tráfego de mercadorias: os tempos de viagem de qualquer cidade portuguesa a qualquer cidade francesa são de longe superiores ao transporte aéreo, e, para passageiros, com custos económicos equivalentes. Tal não se verifica para mercadorias.
Mas é crucial que exista uma ligação ferroviária eficiente à europa.
2.c) O facto de presentemente nos estarmos a focar na rede de Alta Velocidade para passageiros, vem esconder graves deficiências na nossa rede: primeiro ponto: não existe uma única ligação em viadupla a Espanha. Via dupla só entre Braga e Setúbal. Segundo ponto: A maior parte das capitais de distrito estão muito mal servidas, o que indicia muito má cobertura geográfica. A única linha electrificada até à fronteira é Aveiro - Vilar de Formoso, o que implica a utilização maçiça de locomotivas diesel. Ou seja, paga-se o desinvestimento feito durante anos, que devia envergonhar gerações. A modernização da linha do Norte arrastou-se durante anos, e ainda não está completa. Não há efeito de "rede": não há multiplas opções para chegar a um destino, o que acumularia mais passageiros de diferentes localidades.
3.a) É crucial que a bitola ibérica seja progressivamente eliminada em prol de uma bitola europeia. Isto implica mudança de material circulante (as locomotivas existentes hoje em dia têm de ser substituídas ou adaptadas, as carruagens, idem aspas), construção de novas linhas e substituição progressiva das actuais. Mas não só. É necessário cantonamentos automáticos generalizados. Sistemas de controlo de velocidade. Sistemas de sinalização. Electrificação. And last but not least, perfis de linha que permitam maiores velocidades (não forçosamente velocidades elevadas), e mais toneladas por eixo. Todas estas limitações têm de ser tomadas em conta!
3.b) Raramente ouço, quando se fala em TGV discutir as duas componentes: a primeira, o material circulante (locomotiva + carruagens), a segunda a própria linha. Por exemplo, já temos a experiência do Pendular: óptimas máquinas, capazes de velocidades estonteantes, que estiveram a ser sub-utilizadas por limitações da linha. Ao revés, ter uma linha excepcional que é desgastada por comboios que implicam um muito maior esforço e manutenção é igualmente desperdício. Ou seja, se queremos construir uma linha que receba as fantásticas máquinas da Alstom, factores como o raio de curvatura da linha, alinhamento, o perfil, a distância entre vias, etc, implica custos exponenciais para o projecto. Por exemplo, quanto menor o raio de curvatura, maiores os custos com expropriações, menores as opções para limitar a construção de pontes e tuneis. São considerações não desprezáveis, que não se colocam para velocidades inferiores.
3.c) Finalmente, é possível uma utilização mista? Uma interessante discussão sobre os principais problemas pode ser lida na
wikipedia (em inglês). As conclusões essenciais são de duas ordens: 1. uma linha mista que permita as mesmas velocidades que uma linha dedicada a passageiros tem de ter pendentes mais reduzidas, logo a construção tem maiores limitações conforme referidas no ponto prévio. 2. A capacidade da linha é fortemente afectada pelo facto de coexistir material circulante a diferentes velocidades.
Conclusões:
Há que decidir, urgentemente, o que é necessário para Portugal. Queremos transporte ferroviário de passageiros em Alta Velocidade, ou uma renovação do transporte ferroviário de mercadorias para a Europa (que permite transporte ferroviário de passageiros a velocidades não AV)? É esta definição que importa e urge fazer.
A meu ver, temos de ser responsáveis e esquecer de vez o transporte ferroviário para passageiros em Alta Velocidade durante muitos anos, e concentrar os esforços em dois pontos:
1. Modernização da infraestrutura existente : electrificação, via dupla, ajustamentos pontuais para permitir maior velocidade e toneladas por eixo;
2. Construção de novos canais em Bitola Internacional, paralelos aos existentes, e ampliando a cobertura geográfica do território;
A minha proposta passaria por vários passos:
1. Construção de troços novos em via simples em bitola europeia, electrificada, e vocacionada para transporte de mercadorias (via mista não AV), com a seguinte prioridade:
a) Sines - Beja - Évora - Elvas
b) Aveiro - Viseu - Vilar de Formoso
c) Lisboa - Évora (- Elvas) [No mapa, várias alternativas de entrada em Lisboa]
d) Porto - Vila da Feira - Viseu (-Vilar de Formoso)
2. Upgrade de vias existentes para as características das anteriores:
e) Linha do Oeste (Aveiro - Coimbra - Leiria - Lisboa)
f) Linha da Beira Baixa (Caldas? - Entroncamento - Castelo Branco - Guarda)
g) Linha do Minho (Porto - Valença)
3. Upgrade de todas as vias não electrificadas para permitir a circulação das actuais composições, com preparação para a nova bitola.
4. Pensar em canais dedicados para passageiros, de AV.
Naturalmente, os comboios AV vindos de Espanha poderão circular nas linhas de mercadorias, simplesmente a velocidade reduzida. A meu ver, o investimento no material circulante deve incidir sobretudo sobre locomotivas e composições de carga, mantendo a abertura para, se em Espanha estiverem interessados em realizar um serviço regular Lisboa - Madrid com as condicionantes necessárias, o poderem fazer. Já agora, é assim que funcionam os serviços internacionais do TGV.
De igual modo, coexistirão durante algum tempo duas redes. Isto permitirá continuar a utilizar o material circulante de passageiros existente e progressivamente adquirir e adaptar novo para as linhas em bitola internacional.
Em sumário, não a um TGV, sim a um plano ferroviário nacional com incidência no tráfego de mercadorias.